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entrevista com artistas

Frederico Coelho colocou a entrevista da Noemi com o Nuno Ramos lá objeto sim objeto não

Raramente replico conteúdo de outros jornais, mas a entrevista dada por Nuno Ramos ontem para o caderno Mais! da Folha de São Paulo é de uma lucidez imensa e abre a cabeça pelas idéias lançadas e debatidas. Vale a pena a leitura, ampliar o raio de ação dela. Destaque para as perguntas de Noemi Jaffe, que enriqueceram em muito a conversa com o artista paulista.

NOEMI JAFFE – COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

As palavras “ameaça” e “iminência” têm a mesma origem: algo que está próximo, em suspensão. Mas o que está prestes a acontecer não deveria representar, necessariamente, um perigo. Entretanto, esse momento -em que se sabe que algo vai ocorrer, mas não se sabe o quê, como ou quando- é tido muitas vezes como ameaçador. Não há como fixá-lo e não se sabe o que virá. É esse pomo da coisa, esse nó em que a coisa, em pleno acontecimento, é igual a si mesma, que Nuno Ramos quer deter, tanto na arte como na literatura.

Em seus textos literários, esse momento aparece numa espécie de captura em flagrante da palavra, quando ela ainda não deixou de ser som e tampouco se cristalizou em significado. A palavra é pega com a boca na botija, no meio do caminho; por isso tanto estranhamento e a ausência de sequências narrativas.

No trabalho artístico de Nuno, esse instante, como ele mesmo diz nesta entrevista à Folha, é aquele da quase catástrofe, antes que ela se desencadeie, quando a matéria está inteira, bruta e infinita no ato mesmo de acontecer. Percebe-se que alguma coisa, que não está lá, ronda a obra. O que está lá é o quase, como se pudesse ser “completamente quase”.

Já em seus ensaios -sobre arte, futebol, música e, de forma mais geral, sobre o Brasil-, Nuno Ramos não se fixa mais tanto na iminência e parte direto para os resultados, em análises tão claras quanto poéticas. Prestes a publicar dois livros, que dão sequência a sua dupla atividade em artes plásticas e literatura, Nuno fala, nesta entrevista, sobre alguns dos temas constantes em sua produção.

Entre eles, a aproximação entre as coisas e as palavras, o processo de institucionalização da arte e o caráter inevitavelmente “tardio” da arte contemporânea.

Entrevista

FOLHA – Você acha a arte inútil?

NUNO RAMOS – Acho que não há arte sem um lado inútil, algo que não caiba na vida nem no tempo. Você olha uma coisa antiga e parece que ela foi feita ontem. O azul da capela Scrovegni, de Giotto [do século 14], é tão recente quanto o azul de Yves Klein [1928-62]. No fundo, toda arte é contemporânea.

FOLHA – Mas, em algum outro momento da “contemporaneidade”, já se chegou à saturação de significados em que estamos hoje?

RAMOS – Concordo que o conjunto de obras de uma grande mostra possa parecer inacessível e saturado, em grande parte porque muito voltado para o blablablá curatorial, que muitas vezes neutraliza e adormece o bicho vivo que mora em tantas obras. Mas acho que há muita coisa boa rolando, e fica difícil ser pessimista diante de obras como as “Elipses” de [Richard] Serra, o teatro do sublime de Olafur [Eliasson], a solidez de um quadro de Paulo Pasta.

FOLHA – Alberto Tassinari, sobre sua obra, fala em um alpinista que escala ao mesmo tempo em que escorrega. Isso lembra Camus (1913-60), que, em “O Mito de Sísifo”, fala de um Sísifo orgulhoso de sua condenação, um “rebelde ativo”.

RAMOS – A diferença entre as duas imagens é que, no meu caso, erguer e perder a pedra formam um só movimento. Mas queria voltar à pergunta do começo. Embora não reconheça em obras individuais a saturação que você menciona, vejo no processo institucional uma pressão dissipadora, uma conspiração difusa pela mediocridade. Por isso, o artista hoje talvez devesse descobrir um sentido contemporâneo para um outro livro de Camus, “O Estrangeiro”. Um sentido de ambivalência.

FOLHA – A pressão institucional tende a destruir a ambivalência, a capacidade de ser estrangeiro?

RAMOS – A gente vive à sombra do movimento moderno, em que a polaridade arte-mundo era definida por negação. Hoje, esse confronto se esfacelou. No entanto, o que se busca numa obra de arte é ainda ar novo; a arte foi inventada para trair a mesmice da vida. O problema é que esse movimento já foi de alguma forma ocupado pelo jogo institucional. A “estrangeirice” hoje está na capacidade do artista, como um tatu convicto, de cavar o buraco da própria visão de mundo, de fixar e enraizar sua própria “poética”. Arte, é bom lembrar, é sempre uma espécie de visão, de mundo paralelo, um “como se”. O mais maluco é que quase não dá para imaginar fazer isso sem contato e contágio com as instituições (mercado, bienais, museus etc.), que parecem querer sobrepor o seu próprio “como se” ao das obras que abrigam. De novo, acho que ambivalência é a palavra-chave.

FOLHA – Tassinari fala de duas tradições do pensamento brasileiro. De um lado, Euclydes da Cunha, Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, Zé Celso, Glauber Rocha e Hélio Oiticica; do outro, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Niemeyer, concretos, João Cabral, bossa nova, tropicalismo. No meio: Carlos Drummond de Andrade. E afirma que você opera esteticamente nos dois campos. Concorda?

RAMOS – Drummond é a coisa mais livre que o Brasil produziu, o artista que topou olhar para este patrimônio peculiar brasileiro: o da indecisão constitutiva entre o moderno e o atraso, entre o gentil e o violento. Drummond descreveu esses dois polos contrários como irmãos gêmeos, amarrados, desencapando os dois fios e fazendo ligação direta entre eles. Dos dois outros lados, me identifico com o primeiro, talvez, pela estridência estilística, mas principalmente com o segundo, o lado Goeldi-Bandeira-Nelson Cavaquinho, que escapa desse nasce-morre drummondiano e mergulha direto na derrisão nacional. Fico pulando de um lado para o outro.

FOLHA – Em sua produção, em geral, vejo uma mistura de entusiasmo e cansaço, desencanto e promessa.

RAMOS – A palavra “tardio” se aplica um pouco a todos nós. A arte é ainda o buraco para o agora, a fagulha do diferente, mas alguma coisa tardia cerca tudo e, mesmo no meu trabalho, o Brasil já foi de certa forma convertido em cultura. É bom lembrar que as “Elipses” do Serra, um dos trabalhos mais potentes dos últimos anos, são, de fato, elipses -um sistema estranho de retorno. Ainda que fora da plenitude do círculo, algo ali quer voltar.

FOLHA – A crítica já destacou um aspecto alegórico no seu trabalho. Seus textos e obras são alegóricos, no sentido benjaminiano, de reconstruir o mundo a partir das ruínas, de ruínas que podem se positivar? Eu acho que você fez isso no “111”, por exemplo.

RAMOS – Concordo. Mas num certo sentido “111” é uma exceção, porque parti de significados postos no mundo (notícias de jornal, nomes dos mortos etc.). Eu não parto quase nunca desse ponto, mas da matéria, o que é sempre mais abstrato. Procuro um estado de matéria arruinado em que nascer e morrer não sejam opostos. Preciso da matéria em estado bruto, preciso que ela quase caia e quase se transforme em outra coisa. Esse ponto de virada é o núcleo do que quero -uma espécie de suspensão, de susto, da iminência da catástrofe, das grandes mudanças que a vida tem. Quando acho esse ponto, o resto parece encaixar-se.

FOLHA – Ambiguidade é uma palavra que você usa muito. Pensando em seu trabalho, Lorenzo Mammì fala de indefinição congênita, Tassinari, de indecisão entre os limites…

RAMOS – Exatamente. Acho que a passagem entre os opostos é instigante para mim. Nesse sentido, meu trabalho lida com alguma coisa pré-formada, que não se constituiu ainda. Os barcos de sabão, que fiz agora na exposição “Mar Morto” [no primeiro semestre, no Rio], pareciam geológicos. Procuro achar esse estado ambivalente entre o formado e o disforme, o sólido e o líquido, o cafona e o austero, o eufórico e o luto.

FOLHA – Já ouvi gente dizer, inclusive críticos, que considera um abuso colocar sambas como os do Nelson Cavaquinho (1911-86) em seus trabalhos, porque são “incriticáveis”.

RAMOS – O que é incriticável?

FOLHA – O samba e o próprio Nelson, como verdadeiras instituições, coisas de que todo mundo gosta…

RAMOS – Tudo é criticável -falar bem é criticar também. Não tenho medo de utilizar nada do que possa se oferecer para mim -esse medo me parece uma forma perversa de controle cultural. A cultura deve ser usada à vontade, comida com a boca aberta. Era só o que faltava: o Nelson Cavaquinho, que morria de fome anteontem, virar agora panteão nacional. Isso vem de um certo pânico de que aspectos da cultura voltem a misturar-se (artes plásticas e canção, neste caso). Procuro justamente conectar, pôr em comunicação, aquilo que parece isolar-se cada vez mais. A canção brasileira é uma espécie de utopia realizada, quando você encosta ali, tudo reage e se encaixa.

FOLHA – Existe uma tradição brasileira de crítica de arte que procura relacionar a forma social (aspectos específicos da sociedade brasileira) às formas artísticas particulares. O exemplo maior dessa tradição talvez seja Antonio Candido, mas autores como Roberto Schwarz, Mammì e Rodrigo Naves dialogam com ela. Como se relaciona com essa tentativa de leitura nas diversas áreas do fazer artístico?

RAMOS – O elemento verdadeiro dos meus ensaios é o elogio do objeto à minha frente, a tentativa de entrar, digamos, em “fase poética” com ele. Isso vem, eu acho, de uma outra vertente, da tradição crítica das artes plásticas, que tem origem em [Mário] Pedrosa e [Ferreira] Gullar e um momento decisivo no Ronaldo Brito, chegando aos críticos que são realmente próximos de mim: Rodrigo Naves, Alberto Tassinari e Lorenzo Mammì. Talvez essa leitura da cultura brasileira através de um desvio entre um modelo original e sua implantação entre nós, que está no núcleo do pensamento de Antonio Candido e Roberto Schwarz e que é importante também no livro do Rodrigo sobre a formação das artes plásticas no Brasil (mas não tanto na sua produção crítica), tenha sido substituída nos meus ensaios, meio sem querer (e sem formar, é claro, uma teoria), pela tematização de um desvio em relação ao espírito do tempo, à “agoridade” de cada época. É curioso como eu rendo mais falando de artistas como Paulinho da Viola ou [Oswaldo] Goeldi, marcados por um sentido de distância e de extemporaneidade. E mesmo no artista brasileiro de que mais gosto, o Hélio Oiticica [1937-80], claramente voltado para uma intervenção direta no seu tempo, fui buscar uma leitura a partir de suas contradições -a atividade misturada à passividade e ao torpor; o entrar na obra como buraco e refúgio dentro do mundo; a reversão do dentro e do fora na fita de Möbius tendo como preço um circuito infindável de retorno.

FOLHA – Quais são as referências artísticas que você mantém afastadas de seu trabalho porque admira, mas à distância? E quais são as que você quer possuir, incorporar?

RAMOS – Acho que, para manter o pique do trabalho, reduzi a expectativa pela obra-prima (não gosto completamente de nada do que fiz) e o pânico da influência. Tenho influências a torto e a direito, escolhendo ou não escolhendo, sabendo ou não sabendo. Há dois grandes tipos de influência -a “poética” e a “técnica”, que não se separam completamente. Tenho uma grande influência “técnica” do Frank Stella, no sentido daqueles relevões dele, que são muito importantes para mim. Mas meu trabalho é absolutamente diverso do dele no sentido poético -ele é um pragmático norte-americano e meu trabalho não tem nada com isso. Tenho uma influência poética, mais profunda, do [alemão Joseph] Beuys -um fascínio pelo que está dissolvido, um amor pelo desastre. Mas não acho produtiva, numa situação periférica como a nossa, a reivindicação literal pela originalidade. Nós temos um “delay” histórico inevitável, que é rico também, e temos que nos haver com isso. Na verdade, ao invés de buscar o que em nós é contemporâneo, talvez fosse mais rico procurar o que em nós é extemporâneo, deslocado no seu tempo, mas sem qualquer arcaísmo. Drummond tem grande dose de extemporaneidade, como Machado, Paulinho da Viola, Volpi ou Amilcar de Castro, e isso responde por grande parte da originalidade deles. Esse escorregão no tempo parece uma reação inteligente à ambivalência central de nossa presença no mundo -o estar “condenado ao moderno” simultâneo à impossibilidade radical de sê-lo completamente.

FOLHA – Seu trabalho há muito tempo inclui um diálogo próximo com críticos como Rodrigo Naves, Mammì, Tassinari e, agora, Paulo Sérgio Duarte. Isso parece fazer parte de seu próprio projeto. Podem até fazer reservas a alguns aspectos do trabalho, mas dessa forma mantêm viva uma tradição crítica em extinção, como a que existiu entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira.

RAMOS – Isso é fundamental para mim. Uma das caretices supremas do nosso tempo é transformar o crítico num ser enfatuado e ressentido -na verdade, há uma libido na crítica, um desejo por mais arte. O que a crítica verdadeiramente faz, mesmo quando fala mal, é pedir à obra que vá mais longe, que seja mais profundamente o que ela tiver de ser. O Brasil tem tradição disso, desde os anos 60, numa quase simbiose entre obra e crítica, e seria fundamental que o jogo institucional-curatorial entre nós pudesse aproximar-se dessa voltagem. Mas acho que essa era está se encerrando, porque agora há muito mais lugar para a obra no próprio mundo, e a crítica já não é tão umbilicalmente presa ao seu objeto. Eu vivi, e vivo, a transição entre estes dois modelos.

FOLHA – Você parece querer penetrar na linguagem das coisas, como se elas pudessem falar sem sua interferência. Nesse sentido, parece que há uma espécie de “teoria da linguagem”, como no texto de abertura de seu último livro, “Ó”.

RAMOS – Tem um tema que volta sempre -como seria se a palavra tivesse o poder de substituir fisicamente aquilo a que se refere? Isso trava o aspecto aéreo, gasoso, das palavras, que passam a querer carregar peso, corpo, suor. Isso não é uma teoria, mas volta sempre, e talvez queira compensar a loquacidade desenfreada das minhas coisas, como um freio ético, como se dar corpo às palavras pudesse diminuir a mentira delas.

Essa aí embaixo é do Marco Aurélio Fiochi que entrevistou Regina no número 5 da revista Continuum do Itáu Cultural. Vale conferir…

Artista intermídia com atuação intensa há mais de quatro décadas no Brasil e no exterior, Regina Silveira aceitou o convite para um exercício criativo: pensar a arte da próxima geração. Nesta entrevista, concedida em seu ateliê, a gaúcha radicada em São Paulo desde os anos 1970 aponta as intervenções artísticas no cenário urbano entre as tendências que gostaria de ver como predominantes daqui a 20 anos. “Meu convívio com a arquitetura me faz observar a perda de vitalidade do cubo branco e a inserção cada vez maior da arte em espaços públicos.” Uma das maiores referências brasileiras na relação entre arte e tecnologia, Regina também vê na hibridização de linguagens o futuro da produção artística. Essa característica, segundo a artista, tende a ser cada vez maior graças à globalização e ao poder de comunicação da internet.

Ao projetar a arte para um distante, mas não impalpável, ano de 2027, Regina faz ressalvas a uma possível contaminação da arte por questões ambientais, pela violência e pelos conflitos mundiais. “Se o artista é um ser inserido no social, ele tem um imaginário formado pelas condições em que vive, e tem de ter uma profunda consciência do mundo, da realidade. (…) [Mas] O artista não coloca soluções, ele coloca perguntas, e pode também provocar tensão.”

Como você imagina as artes visuais daqui a 20 anos?
Há 20 ou 40 anos eu não conseguia imaginar como seria a arte hoje. Da mesma forma, acho difícil imaginar hoje como será a arte daqui a 20 anos. Com uma diferença: hoje já tenho um longo percurso de envolvimento com a criação artística, e uma visão maior da produção tanto nacional quanto internacional. Mas o que eram certezas 20 anos atrás, aquilo em que eu apostava como perspectiva de futuro, vejo que inevitavelmente passou pelos filtros do tempo, da qualidade, da poética, da linguagem. Por exemplo, minha crença e envolvimento com novos meios, e a certeza de que outros meios sairiam de cena, como a pintura, cuja morte foi tantas vezes anunciada. Se naquele momento eu podia dizer “a pintura está fora de cena”, hoje, quando vejo a pintura de um artista como o alemão Sigmar Polke, eu me calo. Ou seja, a pintura ainda vai bem e participa igualmente de uma cena que é mais do que nunca eclética e híbrida, em que novas tecnologias e novos meios convivem com outros, e tudo interage, tudo está ativo. Mas pensar o futuro da arte não se limita aos modos de produção artística. Há também questões conceituais e a grande problemática da interação da arte com o social.

Então você aposta numa hibridização cada vez maior?
Parece que a hibridização veio para ficar. O que ela deixa claro, na própria mistura, é que a poética é o principal, e não os meios. Tudo interage, mas o principal é a poética, é o que o artista diz, como diz e como opera a linguagem. Outro indicativo do que acontece no presente já vem do passado e ainda pode dar pistas para pensar o futuro: o trânsito entre linguagens, rotulado como interdisciplinaridade nos anos 60 e 70. Naquele momento, no curto-circuito entre formas de arte, havia a impregnação mútua, como ocorreu entre as artes visuais e a poesia, da qual a poesia visual é um bom exemplo. Mas também havia a interdisciplinaridade da poesia com a performance, com a música, além das trocas com as ciências humanas e as linguagens científicas em geral. Entendo que a interdisciplinaridade é cada vez mais importante em um cenário de hibridização e de globalização.

Como sua produção poderia se encaixar no cenário da arte daqui a 20 anos?
Espero que seja pela persistência da investigação poética e pela liberdade que tenho procurado manter em meu percurso profissional. Também a curiosidade que me leva a experimentar visualidades e meios pode ser uma ponte provável para esse futuro da arte que eu adivinho como híbrido. Já passei por diversas modalidades de trabalho. Mesmo que ultimamente meu foco seja a relação entre arte e arquitetura, sigo curiosa quanto às outras possibilidades que estão postas ao meu alcance, sem qualquer especialização de minha parte. Meu convívio com a arquitetura me faz observar a perda de vitalidade do cubo branco [espaço tradicional das galerias e museus de arte] e a inserção cada vez maior da arte em espaços públicos. Tenho tentado dar essa direção ao meu trabalho, de diversas maneiras, nos últimos anos. Se essas questões vão ser mais exploradas no futuro e eu puder contribuir para isso como artista, quem sabe não será esse o passaporte para me encaixar no cenário artístico daqui a 20 anos?

Que importância a questão ambiental, os conflitos mundiais e a violência terão na arte dos próximos 20 anos?
Essas questões poderão ser temas artísticos, mas também serão temas globais que ameaçarão a vida e a arte. Falamos nos próximos 20 anos da arte, no entanto podemos não estar mais aqui em 20 anos… Mas não sou catastrófica. Quando vejo fotografias do telescópio Hubble, por exemplo, ganho confiança na inteligência do homem, no que somos capazes de fazer. A tecnologia pode nos afundar, mas também pode nos salvar. Se o artista é um ser inserido no social, ele tem um imaginário formado pelas condições em que vive, e tem de ter uma profunda consciência do mundo, da realidade. Caso essas questões lhe sirvam de tema, melhor!

Se essas questões forem preponderantes, você acredita que a arte poderá assumir uma feição engajada? Isso é bom ou ruim?
Pode ser bom ou ruim. Isso já aconteceu muitas vezes no século XX. Quanto ao aspecto bom, lembre-se das utopias do design, da arquitetura e das artes plásticas, no construtivismo; o lado ruim, por exemplo, foi o engajamento da arte hiper-realista do comunismo… É certo que em alguns momentos a arte pode assumir um modo raso e muito comprometido. Mas também há grandes obras feitas com comprometimento intenso. É só pensar em uma obra emblemática, Guernica, de Picasso, por exemplo. Tudo sempre depende de como o artista trata os conteúdos. Depende da qualidade desse artista, do seu poder de fogo!

O artista é aquele que põe mais fogo onde fogo há. Por exemplo, se vai tratar de violência, vai tensioná-la ainda mais com o discurso artístico…
O artista não coloca soluções, ele coloca perguntas, e pode também provocar tensão. Mas dificilmente uma obra de arte soluciona problemas sociais. Ao contrário, ela coloca um grande ponto de interrogação sobre esses problemas. Por exemplo, as intervenções no espaço público têm grande força de transformação. É algo que observo com satisfação: a saída dos espaços sacralizados da arte para o espaço de manifestação da rua, numa relação mais próxima com o público, como ocorreu nos anos 60 e 70. Agora, se a arte pública pode contribuir para a transformação dos modos de estar no mundo é uma aposta.

É possível ocorrer nos próximos 20 anos uma ruptura que propicie o surgimento de uma arte brasileira pós-contemporânea?
Nesse caso, temos de inventar uma terminologia melhor, pois contemporâneo é sempre aquilo que se vive no momento. Para haver uma ruptura, teria de existir um discurso homogêneo – pois se trata de romper com ele. Por enquanto, não consigo sequer perceber esse discurso na arte brasileira contemporânea.

Vamos supor uma completa migração de suportes nesse período, ou seja, a arte poderia se tornar somente imaterial?
Essa é uma proposição que já existia na época da instalação do Itaú Cultural. Para atender a esse futuro, houve a construção do edifício que a instituição ocupa atualmente, o qual apresenta problemas espaciais para as exposições que são montadas ali. O fato é que a arte não perdeu seu caráter de fisicalidade, materialidade, inclusive para muitas manifestações de arte e tecnologia. Não sei se a imaterialidade vai ter essa predominância dentro de 20 anos. Não consigo imaginar que caminhos seriam esses que levariam a arte a se transformar em completamente imaterial, pura luz, puro conceito, não-matéria. De qualquer maneira, a imaterialidade se intensificou, deixando tudo muito mais acessível e aumentando em muito nossa capacidade de agir.

Você ajudou a formar uma geração de artistas que está consolidada. Como vê a formação artística hoje e como imagina que ela será daqui a 20 anos?
Observo que os artistas que ajudei a formar estão formando outras gerações, há muito tempo. Passei o bastão para eles, em boa hora! Mas continuo atenta à formação de jovens artistas, e alguns, como meus assistentes, sigo mais de perto. Também tive alunos artistas no exterior, cuja trajetória acompanho com muito interesse. É um vício da profissão de professor e de minha maneira de ser. Mas tem sido uma parcela muito compensadora da minha vida. Fico sempre orgulhosa de pensar que, em alguma coisa, que nunca se sabe bem em que consiste, eu pude contribuir para aquele percurso. Já a formação do artista, seja agora, seja no futuro imediato, sempre dependerá tanto do estudo quanto da freqüência no ambiente da arte, das informações que se extraem e das trocas que se fazem nele. Nesse campo tudo é muito dinâmico, e também as gerações. Atualmente, o período de uma geração de artistas é bem mais curto do que normalmente era, de 25 anos. Em pouco tempo as gerações se misturam, no convívio profissional e na própria vida. Sobre o professor do futuro, mantenho a posição de que o artista aprende muito (ou aprende apenas) com outro artista. E só é bom professor de arte quem é bom artista, porque além das linguagens da arte ele ensina – eu diria quase epidermicamente – a dedicação, a capacidade de concentração, os valores éticos. Até seu gesto ensina…

Qual será a importância da arte brasileira daqui a 20 anos se apostarmos que a globalização romperá de vez os limites de nossa posição periférica?
O artista brasileiro, tanto quanto o artista africano, taiuanês, chinês, não está inserido no mainstream. Ele sempre se confinou em algumas localizações geográficas, mas circula e tem presença nesse vasto mapa em que os artistas se deslocam, ao mesmo tempo que tenta manter os elementos que o diferenciam, e que não são necessariamente as marcas de sua nacionalidade. Esse é o grande desafio, pois cada vez mais os artistas viajam ao exterior e podem ter suas obras apreciadas internacionalmente. Um lado positivo da globalização é o intercâmbio de informações proporcionado pela internet. Sabe-se muito mais da arte brasileira do que se sabia nos anos 80, quando críticos internacionais se limitavam a entender a arte contemporânea brasileira como descendência direta de Lygia Clark e Hélio Oiticica, aplicando uma fórmula muito reducionista. Hoje já não é assim: publica-se muito mais não só no Brasil, mas também em outros lugares, e a arte brasileira, aliás a latino-americana, tornou-se muito mais interessante aos olhares europeu e norte-americano, devido à sua vitalidade e originalidade quando comparada à arte do “primeiro mundo”.

As vezes leio entrevistas de artistas e fico com a vontade de ter respondido certas perguntas. São pensamentos parecidos, uma coincidência no modo de olhar o mundo ou mesmo o fragmento de uma conversa maior que passa de um a outro colega. Tive essa sensação recentemente lendo entrevistas do Iran do Espírito Santo na Bravo!, Nuno Ramos na Folha e Regina Silveira na revista Continuum. Aí embaixo segue a do Nuno. Foi publicada no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo, 18 de fevereiro de 2007. O editor Marcos Augusto Gonçalves é o autor das perguntas.

Depois de amanhã, o artista plástico Nuno Ramos abre três grandes salas
do Instituto Tomie Ohtake para mostrar uma série de novos trabalhos. O
mais inusitado é um ambiente no qual três jumentos carregam caixas de
som entre recipientes com água e montes de feno e de sal. Ouve-se a
música “Se Todos Fossem Iguais a Você”, de Tom e Vinicius.
Nas outras salas, Nuno mostra uma instalação com grandes esculturas em
vidro e obras de uma série que já se anunciava na Bienal do Mercosul, em
Porto Alegre, no ano passado. O artista, que trabalhou com o
norte-americano Frank Stella e é considerado um dos mais interessantes e
potentes da arte contemporânea brasileira, fala na entrevista que se
segue sobre sua atual fase, o mercado e as instituições do circuito
artístico.

Folha – Como surgiu a idéia de fazer um ambiente usando burros?
Nuno Ramos – Esse trabalho, chamado “Vai, Vai”, partiu das caixas de som
cobertas por três materiais: sal, água e feno, idéia que vem talvez de
um filme que fiz [“Luz Negra”, com Eduardo Climachauska] em homenagem a
Nelson Cavaquinho, em que caixas de som eram enterradas e postas para
tocar sob a terra.
A novidade dos burricos é criar um sistema de vivência, com sua duração
e literalidade, mas que estivesse pondo materiais e palavras em
comunicação. Cada material tem uma voz, e os animais, carregando caixas
de som e vivendo dos materiais cujas vozes eles carregam, promovem uma
mistura, meio pachorrenta e estranha, entre matéria e sentido.

Folha – Seu trabalho parece caminhar para um novo ordenamento dos
materiais e linguagens. Você pode falar sobre esse processo?
Ramos – Acho que, se há uma linha geral naquilo que eu faço, talvez seja
um longo percurso do informe ao formado, do misturado ao distinto, do
solo pantanoso, sem contorno, próprio dos meus primeiros quadros, aos
elementos cada vez mais nítidos, desenhados mesmo, que vêm surgindo em
meu trabalho. Acho que esta exposição procura organizar aquilo tudo o
que veio se individualizando num sistema de trocas, de circulação.
Assim, tanto o trabalho dos burros quanto o conjunto de esculturas de
vidro e desenhos que chamei de “Entre”, procuram botar materiais
distintos em comunicação, o que inclui seus nomes e suas características.
Para quem quer examinar essa passagem literal de uma coisa a outra, é
claro que a linguagem falada e escrita é uma saída e um obstáculo. Ela é
a própria circulação, o próprio vento que une infindavelmente tudo a
tudo. À minha maneira, acho que precisei transformar a linguagem numa
coisa, num corpo, numa matéria, numa armadilha literal, para que ela não
me dominasse demais.

Folha – Você está ficando mais enxuto e econômico formalmente?
Ramos – Não sei se enxuto ou econômico, que não são características
muito minhas, mas espero que caminhe para algo formalmente mais
poderoso. Isso é uma noção que nosso tempo parece ter perdido: a do
poder da forma. O vocabulário formal é uma catapulta poderosa que lança
a obra para além do controle social.
Acho que a gente vive uma época extremamente controladora, e o pior é
que aquilo que nos controla tem ótimos valores (ecologia, minorias
étnicas etc.). Assim, há muita arte hoje de cabeça baixa, tratando com
imediatismo as questões de nosso tempo. O repertório formal, longe de
ser alienante, dá fôlego e imensidão ao querer da arte. Não conheço nada
mais ambicioso do que as verticais, horizontais e cores puras de Mondrian.

Folha – Você é um artista com diversos talentos e interesses. Compõe,
filma, é um profundo conhecedor de samba e futebol. Como isso se reflete
em seu trabalho?
Ramos – Acho que muito do meu trabalho exprime uma espécie de amadorismo
latente que atravessa ainda, para bem e para mal, a vida social no
Brasil. Talvez o lado bom seja uma espécie de disponibilidade que o
trabalho tem, como se ele pudesse identificar-se com um leque enorme de
aparências e de possibilidades. Mas há também aí uma dissipação de
interesses, uma dificuldade de enganchar, de apresentar algo formado,
que eu sinto como defeito.

Folha – Você tem outros projetos em vista em outros campos que não a
arte propriamente dita?
Ramos – Respirar um pouco mais. Tolerar mais.

Folha – O que ficou de sua experiência com o Frank Stella?
Ramos – Antes de mais nada, uma amizade verdadeira. No que diz respeito
à arte, devo ao Stella a noção da potência do relevo, como uma
profundidade perspectiva às avessas. De resto, somos quase antagônicos.
Ele, um pragmático norte-americano no centro do furacão, querendo manter
viva a arte e a pintura nesse mundo todo impuro e híbrido, misto de
Frick Collection com invasão do Iraque, que é o dele. Eu, que nunca saí
muito daqui, fico com os meus burrinhos, querendo ouvir a voz do que me
alimenta.

Folha – Como vão o mercado de arte e o circuito institucional no Brasil?
Ramos – Há mais avanços no mercado do que no circuito institucional.
Hoje o Brasil tem colecionadores que não tinha e possibilidades
internacionais de comercialização que não tinha. Quanto às instituições,
à parte os novos centros culturais financiados pelas leis de isenção
fiscal, as demais estão às traças, e continuamos com a mesma velha
carência: um lugar onde ver o que fizemos de melhor. Um conjunto de
paredes brancas apoiadas num chão de concreto com Volpis, Miras,
Goeldis, Tungas, Zés Resendes, Paulos Pastas devidamente selecionados e
espalhados por toda a parte. É pena.